Entrevista com Affonso Romano de Sant’Anna

Analisar a cultura contemporânea a partir de uma “revisão” da produção artística do século XX. Essa é bandeira levantada pelo poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna no livro Desconstruir Duchamp, que deve chegar em breve às prateleiras das livrarias de todo o país. A obra reúne textos de sua autoria sobre artes plásticas publicadas no jornal O Globo durante o ano de 2002. “São artigos que surgiram não só de uma necessidade pessoal, mas atendendo à perplexidade do público”, explica. Para ele, a arte perdeu o rumo e a noção de limites e, hoje, as pessoas geralmente saem das exposições com a cabeça cheia de interrogações.

Considerado pela revista Imprensa como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião pública do país e pela crítica especializada o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, o escritor garante não ter a pretensão de assumir a posição de crítico de arte. “Só quero propor uma leitura da cultura contemporânea e sugiro que ela seja feita, agora, a partir das artes plásticas”, explica. Isso porque, para ele, “o século XX foi o campo de provas de três coisas que vieram do século XIX: o marxismo, a psicanálise e a arte moderna. Os dois primeiros já entraram em revisão, mas até agora, a arte moderna não”.

Seguindo a mesma linha crítica, Affonso também está lançando O que fazer de Ezra Pound. Mas, nesse caso, o foco está na literatura.

¿Por que você resolveu lançar um livro sobre artes plásticas?

O que me interessa na verdade é fazer uma análise da cultura em que estamos inseridos. E, para fazer a análise dessa cultura, é imprescindível fazer uma análise das artes plásticas. Porque elas parecem ser, e na minha opinião são o sintoma mais clamoroso de uma série de coisas, tendências e impasses da nossa cultura. Por isso eu vivo dizendo que as artes plásticas são como um doente terminal que precisa de uma junta médica multidisciplinar para que se faça um diagnóstico da situação delas. Mas o meu interesse é, a partir das artes plásticas, entender essa coisa chamada pós-modernidade. E inserir todos esses problemas da pós-modernidade dentro dessa coisa maior chamada globalização. A partir daí, entender não apenas o que ocorre numa bienal ou numa galeria, mas entender a questão da droga, a questão da violência, porque isso tudo está relacionado.

¿O que quis dizer com o título Desconstruir Duchamp?

É um título irônico, porque, na verdade, faz uma ironia com os descontrutivistas, que são os artistas e autores – também chamados de pós-modernos – que afirmam que a verdade não existe, que não existe sistema, que o que existe mesmo é o instante, o momento, a fragmentação e que a História não tem sentido. Então, a partir desse título irônico, estou reunindo os artigos que publiquei n’O Globo em 2002, que fazem uma análise da arte moderna e pós-moderna. Então, o livro não está centrado apenas na figura de Marcel Duchamp, mas passa em revisão tudo o que se convencionou de arte moderna e arte pós-moderna. É uma proposta de revisão total, em relação ao século XX.

¿Você também está lançando O que fazer Ezra Pound. Do que se trata
esse livro?

Esse também é um livro polêmico, mas na área da literatura. Reúne ensaios que publiquei em várias revistas questionando a figura de Ezra Pound e avaliando suas virtudes e seus problemas. Normalmente, ele é considerado uma estátua diante da qual se deve ajoelhar sempre.

¿Voltando ao primeiro livro, qual a constatação mais grave que você
pôde fazer em relação às artes plásticas na contemporaneidade?

A de que existe uma perplexidade do público em relação às artes plásticas. Mais que isso, há um desprezo, uma ironia por parte do público. As pessoas que vão às bienais, vão como se estivessem indo para um circo ou para um shopping. Não vão para ver a exposição e sim porque aquilo se transformou num fato de mídia. E ficam perambulando por ali como se fossem sonâmbulos no meio daquelas obras.

¿Na sua análise, você entra no mérito de artistas específicos?

Eu faço considerações sobre vários artistas, mas também assinalo que não sou um crítico de arte. E nem quero ser. Estou fazendo uma leitura da Cultura. Então, o que estou fazendo no livro é uma análise antropológica, sociológica, psicanalítica, lingüística, semiológica.

¿Que avaliação você faz da crítica de arte no Brasil, atualmente?

Eu acho que a crítica de arte está totalmente perdida. Praticamente não existe crítica de arte no Brasil. O último crítico de arte, em jornal, morreu há um mês atrás, o Wilson Coutinho, d’O Globo.

E as universidades não têm formado críticos de arte...

Não formam e, pior, os jornais substituíram os críticos de arte por jornalistas. Ou seja, é o repórter quem vai cobrir uma exposição. E ele não está interessado, ou melhor, não está aparelhado para julgar e analisar uma obra de arte. O repórter está preparado para fazer reportagem. Então, quando se depara com uma performance, por exemplo, ele se liga no aspecto de evento, de show, do que há de chocante naquilo. Ele pega o fato em si não pela sua característica estética ou artística, mas pelo “choque” que causa no público.

Além disso, ouve um boom nas universidades, especialmente nos cursos
de pós-graduação, de disciplinas e linhas de pesquisa sobre arte e novas
tecnologias. Com isso, a história da arte e a crítica de arte parecem ter
ficado relegadas a segundo plano, quase esquecidas...

Porque isso faz parte de um mito da nossa época: ser moderno. As pessoas acham que a tecnologia vai salvá-las. Se você tem o último programa de computador para trabalhar uma fotografia ou uma obra qualquer, a “novidade” tecnológica é que vai referendar o conteúdo dessa obra. Isso é um efeito ideológico da cultura do século XX, que se apaixonou pela máquina sem pensar no conteúdo, na mensagem, naquilo que a máquina pode transmitir. De tal maneira que a própria obra de arte, hoje, em grande parte, é um produto formal, é um produto de aparência. Por isso ela é tão eventual, tão performática, tão descartável, como é a própria indústria eletrônica.

Agora, vamos falar de literatura. O crítico Wilson Martins afirma, em
texto sobre o seu trabalho, que “o segredo de sua extraordinária qualidade como poeta está em que ele [no caso você] é, antes de mais nada, um intelectual de alto gabarito, sem nenhuma das ingenuidades mentais que mantêm a produção corrente no nível rasteiro das pequenas emoções domésticas e nas dimensões microscópicas da autobiografia insignificante”.
¿Você acha que para produzir boa literatura é fundamental que o escritor seja um intelectual?

Não necessariamente. Há muitos artistas que têm um talento de tal ordem que aquilo emerge e se transforma numa obra durável. Agora, há casos de artistas que, ao mesmo tempo, conseguem articular um outro pólo de compreensão e análise da realidade que é uma leitura teórica, intelectual, etc. No meu caso, eu acho que o Wilson foi bastante generoso nos adjetivos. Mas no ponto de vista essencial, eu acho que isso corresponde a um esforço meu de tentar entender a realidade tanto nos meus ensaios e artigos quanto nos poemas. Meus poemas, por exemplo, têm essas duas facetas: são emocionais e ao mesmo tempo uma organização, uma construção lógica da realidade.

E você concorda quando ele diz que a produção corrente está se dando
no ¿“nível rasteiro das pequenas emoções domésticas e nas dimensões
microscópicas da autobiografia insignificante”?

Em geral é. Eu recebo muitos livros de autores iniciantes e percebo que há uma grande confusão. Acham que escrever suas emoções no papel equivale a um poema ou a uma crônica. Quero dizer, a emoção é importante, mas ela tem de ser mediada, trabalhada de alguma maneira para se converter num produto estético. E, muitas das pessoas que escrevem, escrevem nesse jogo de emoções. Eu tenho até um livro chamado A Sedução da Palavra que tenta dialogar com o pretenso escritor para explicar para ele algumas coisas que talvez seja interessante saber, nesse sentido.

Recentemente, você lançou o livro Nós, os que matamos Tim Lopes, obra que – numa referência ao jornalista da Rede Globo que foi assassinado por traficantes no Rio de Janeiro ao investigar a exploração sexual de jovens em bailes funk – trata da violência urbana. ¿Por que um livro com esse
tema?

Esse livro teve uma trajetória um pouco curiosa, porque ele nasceu de uma emergência, de uma necessidade. Eu havia escrito uma crônica, que é a que dá título ao livro, que é diferente das que haviam sido feitas até então, porque as pessoas ficavam culpando a polícia, os bandidos, o governo e nessa minha crônica o enfoque é um pouco diferente. Mas essa culpa, na verdade, é geral, e, sobretudo dos que consomem droga, seja em que escala for. Além, é claro de advogados, policiais e delegados corruptos. A forma como ela foi escrita, como se fosse uma ladainha, funcionou de tal modo que a crônica passou a ser reproduzida no país inteiro. Passou a ser estudada e discutida nas escolas, foi para a internet e um editor acabou me telefonando dizendo que tinha lido, se emocionado e queria publicar um livro com esse título e me pediu que reunisse as crônicas nessa linha que já eu já havia escrito. Aí eu fui dar uma olhada nas coisas que eu havia escrito nos últimos vinte e tantos anos e fiquei perplexo ao perceber que havia uma continuidade progressiva da questão da violência no país. E o livro foi resultado disso.

¿Como você avalia a abordagem que os escritores estão fazendo hoje
sobre o tema da violência? O fato de a violência estar cada vez mais
presente no nosso cotidiano está influenciando, ¿de alguma forma, a
produção literária corrente?

A violência sempre esteve presente na literatura. Se você pegar os romances de Jorge Amado, José Lins do Rego e dessa geração dos anos 30, apenas eles enfocavam um outro tipo de violência, que era sobretudo uma violência social e econômica. Mas, de uns tempos para cá, na medida em que a vida urbana foi se tornando mais complexa e violentamente incontrolável, a literatura – e o cinema também – começou a incorporar isso. Um dos primeiros a fazer isso foi o José Rubem Fonseca e na esteira dele apareceram vários outros retratando esse universo. Quando ele publicou, nos anos 70, Feliz Ano Novo, foi um escândalo, foi censurado. E as questões que ele abordava então, hoje viraram banalidade.

¿Na sua opinião, qual o maior problema da literatura brasileira
atualmente? Seria a distribuição, o preço do livro, a falta de um público
leitor mais preparado, ¿a concorrência com os meios visuais ou algo mais específico e relativo ao processo de criação literária?

Isso tudo junto leva a algo que eu chamo de “anomia do sistema literário” brasileiro. O sistema pressupõe uma certa organicidade, onde as partes e o todo têm uma articulação entre si. E a literatura brasileira parece uma maionese que desandou. Há pequenos grupos aqui e acolá e é difícil para se ter uma visão de conjunto do que seria a produção atual da literatura nacional. Há coisas excelentes sendo produzidas em Pernambuco, no Ceará, no Rio Grande do Sul, aqui em Brasília, em Goiás... Já houve um período, nos anos 50 e 60 que isso era mais bem articulado. Você abria os suplementos literários dos jornais e tinha uma noção do que era a literatura brasileira. Hoje os suplementos são como a vertente paulista: muito interessados em mostrar que estão atualizados com o que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos, reproduzindo artigos e autores de lá. Ou então são suplementos que ficam trabalhando com grupinhos. E pior: os suplementos literários passaram a ser feitos por jornalistas e não por escritores. Não tenho nada contra jornalista, mas... [risos]

Para terminar, vamos falar de poesia. No seu poema Vício Antigo você se questiona:¿ como é que um homem com 52 anos na cara continua diante de uma folha em branco espremendo seu já seco coração? ¿Não seria melhor investir em ações, ser engenheiro, cirurgião? ¿Hoje, aos 67, escrever poemas ainda é difícil?

Agora você me pegou! [risos] Quando eu era adolescente, eu escrevia uma média de 365 poemas por ano. Escrevia de noite, de dia, no ônibus, no avião, o tempo todo. Uma pulsão juvenil. Com o tempo você vai controlando esse ímpeto. Mas com o tempo também vai acontecendo outra coisa: você vai ficando mais exigente em relação àquilo que escreve. Eu diria que sim, que quanto mais o tempo passa, mais difícil fica para fazer poesia.

Maiesse Gramacho